Um lugar para sonhar . . . Ou apenas dormir

O grande desafio era encontrar um lugar para dormir e, sem exagero, garantir que iria acordar no outro dia”


Meu desafio era encontrar um lugar para dormir
Onde dormir? Esse foi o maior desafio no dia, ou melhor, noite em que tentei dormir na rua. Os desafios foram muitos e poucas foram as opções. Na verdade, péssimas opções.

Não há números exatos para expressar quantos moradores de rua existem no estado de São Paulo. Segundo dados da Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social, o estado conta, hoje, com 101 albergues que atendem a 42.999 pessoas. No entanto, estima-se que 44% dos moradores de rua não dormem em albergues, ou seja, passam a noite na rua.

Numa cidade pequena, como muitas do interior paulista, a única opção, quase sempre, é a rua. Os municípios não possuem um local específico para abrigar os carentes que, na maioria das vezes, se refugiam em praças ou coberturas pelas cidades. E é exatamente essa sensação que estou em busca: a de não ter escolha.

Minha jornada teve início às 23h, no centro de uma cidade com pouco menos de 30 mil habitantes e que não possui albergues ou outro tipo de apoio a moradores de rua. Estou sem comer desde as 17h, o único alimento que carrego é um pão francês não muito novo.

Chinelo de dedo, a calça azul marinho quase imunda, uma camiseta de time de futebol toda desbotada e um boné que, um dia, já fora branco. Assim, eu estava preparado não só para passar a noite no relento, mas para o desprezo também.

Assento-me em uma das calçadas da principal rua da cidade. Há um certo movimento de carros e de jovens que aproveitam a noite de sexta-feira para comemorar a chegada do fim de semana. Minha primeira sensação é de estar cometendo um crime. Parece que estou invadindo um espaço que não é meu. Talvez seja coisa da minha cabeça, mas quem pode garantir que não é o mesmo que os moradores de rua sentem todos os dias?

Não há tempo para me preocupar com dúvidas e paranóias. Preciso encontrar um lugar para dormir. Penso em passar a noite ali mesmo, na calçada da principal rua da cidade. Parece seguro, afinal, há movimento e, se alguém tentar fazer algo comigo, certamente todos irão me defender. É o mínimo esperado de um ser humano. De repente, não sei de onde, muitos carros começam a passar. Todos me olham, me sinto envergonhado, arrependido de viver aquilo e até raiva do meu editor. As buzinas são inevitáveis. Parece ser a única forma com que os motoristas conseguem se comunicar comigo. Não entendo, me levanto, abaixo a cabeça, escondo o rosto com o boné e ando na direção contrária dos carros. Não dá para dormir ali.

A movimentação para. Novamente mudo minha direção. Sinto estar meio louco, sem rumo. Desço a rua em direção à praça central da cidade. No trajeto, observo algumas lojas. Muitas roupas caras, sapatos lustrados. No chão, um anúncio de uma loja de camas e colchões. Eu paro, pego aquele folheto, e fico observando aquele contraste. Eu, todo sujo, mal vestido, com fome e sem lugar para dormir, de frente para uma foto que demonstrava tudo aquilo que eu mais queria naquele momento. Meu maior objetivo não era comprar algo novo, mudar de trabalho ou melhorar meu salário. O grande desafio era encontrar um lugar para dormir e, sem exagero, garantir que iria acordar no outro dia.


Noites de verão só são quentes dentro de casa
Continuo meu trajeto até a praça. No caminho, alguns jovens bebem cerveja em umas mesas dispostas na calçada do outro lado. Atravesso a rua em direção à calçada, eu nem pensava em me aproximar deles, até mesmo por vergonha, mas eles estavam no caminho da praça. Quando me aproximo, cochichos. As moças parecem assustadas e apreensivas. Os rapazes me passam uma sensação de incógnita. Mas tenho certeza: se eu me aproximar não serei bem recebido. Então eu paro.

Avisto a praça, vejo a igreja central da cidade. Há um número razoável de pessoas sentadas nos bancos, minha esperança de aconchego. A maioria é formada por jovens. Moças, rapazes, todos muito bem vestidos. Não sei o porquê, mas, isso me chamava muita atenção e, ao mesmo tempo, me deixava com um sentimento sub-humano. Eu era alguém privado de se divertir porque tinha que, antes, me preocupar em encontrar um lugar para dormir.

Desisto de encontrar abrigo no centro. O movimento me assustou um pouco. Caminho então pela avenida que dá acesso à saída da cidade. Alí, depois de ter andado um bom pedaço de chão, começo a me sentir mais seguro, mas não sei se confundo segurança com a ausência de pessoas. Pelo menos não tenho mais ninguém me olhando e, consequentemente, não sinto mais vergonha. De longe, avisto uma cobertura. Olho no relógio, já passa da meia noite. Continuo caminhando. Alguns carros começam a passar e quebrar o silêncio daquela avenida deserta. Começo a sentir medo, muito medo. Alguns cães começam a latir dentro do quintal das casas ao me ver passar, mas é melhor do que as buzinas dos carros.

Chego à cobertura. Na verdade, é um quiosque. Parece ser um bom lugar para passar a noite. Olho à minha direita e vejo uma viatura da guarda da cidade. Eu simplesmente congelei. Travei mesmo. Não sabia se me escondia, corria ou simplesmente esperava que eles se achegassem até mim. Por sorte, não me viram ou não se importaram.

Sentei-me no chão. Usei meu saco de recicláveis como travesseiro. Já passava da 1h. Eu estava com sono. Coloquei o boné na frente dos olhos e comecei a tentar dormir. O primeiro incômodo, naturalmente, era a temperatura do chão, muito frio. Aos poucos, meu corpo começava a esquentar o ladrio e o ambiente ficava mais aceitável, não confortável. Ao longe, os cães continuavam a latir. Os carros também passavam pela avenida, parecia que os motores iam explodir de tanto que aceleravam. Neste momento, me sentia seguro. O medo somente se mostrava quando o silêncio tomava conta do ambiente. Eu não resistia. Abria os olhos e, assustado, olhava para todos os lados. Era como se eu estivesse jogado à própria sorte, talvez eu realmente estivesse.

A noite começava a fazer frio, mas eu pensava “estamos no verão, não vai esfriar mais do que isso”. Engano. As noites de verão só são quentes dentro de casa. Na rua, por mais quente que esteja o clima, o sereno faz questão de castigar e qualquer vento parece uma tempestade.

Eu brigava com o sono. O cansaço me fazia tirar alguns cochilos. As dores nas costas, o frio, o barulho dos carros e o medo me faziam acordar a todo o momento. Olho no relógio, são 3h. Seriam mais três horas até o sol nascer. De cochilos em cochilos, de sustos em sustos, eu via o tempo que teimava em não passar. Então, antes que o sol ameaçasse nascer, eu me levantei. Todo dolorido, parecia que acabava de vir de uma guerra. Peguei o celular, e pedi para que fossem me buscar. A minha missão acabou. Mas quando acaba a dos milhares que a cumprem todos os dias?


Mais fotos

Um lugar para sonhar... Ou apenas dormir
Um lugar para sonhar... Ou apenas dormir

       

11 comentários:

Unknown disse...

Texto excelente! Parabéns.

Paulinho disse...

Show ! Mas infelizmente isto é a realidade de muitos em um Pais do 3º Mundo.... Ops...o sub mundo é aqui, Brasil.

Unknown disse...

Muito Ótimo mesmo,Parabéns pena que é o nosso Brasil por isso temos que dar valor a tudo mesmo, Abraços Débora Vaz

Marcelo de Souza disse...

Sensacional!! Essa é a única palavra que consigo dizer agora.

Anônimo disse...

muito bom Ju ... texto e fotos otimas.

Larissa Molina disse...

Devo dizer algo mais do que "magnífico" ? É de jornalistas assim que o Brasil precisa!

Vivian disse...

Adorei o texto Ju! Só vivenciando para nos aproximarmos da realidade!

Sabrina Franzol disse...

nada como realmente viver a pauta para relatar a verdadeira situação de uma nação que, cada vez mais, se mostra desumana. Parabéns pela matéria! Tenho certeza que a experiência adquirida com este trabalho lhe fez crescer ainda mais, tanto profissionalmente quanto pessoalmente.

Unknown disse...

juninho voce é muito corajoso !!!

Celiana Perina disse...

Olá, Júnior

Parabéns pelo blog e conteúdo postado. Excelente!

Abç
Celiana

BOTO disse...

Muito Bom Sr. Vieira Junior!
Gostaria de inteirar a sua experiencia!
Não ter onde poder descansar depois de um dia de humilhações de estar pedindo para poder ao menos se esconder da vergonha de ser um "pedinte" é doloroso, mas também o é não ter o que comer depois de um dia de pedinte... quem já passou por um pocadinho de "fome" sabe o quanto é doloroso. Mais doloroso,concordando contigo meu caro, é a indiferença e o preconceito das pessoas que se dizem de bem, mas quando percebem, mas não enxergam os desafortunados, os tratam como párias da sociedade; onde está o "amor" ao próximo? a compaixão? Eu sinceramente gostaria que as pessoas que criticam os ditos "maleiros", "moradores de a de rua" etc etc, passassem um dia, apenas 24 horas na ausência de comida,afeto, fé, e outros tantos predicativos que faltam a sociedade filantrópica.

Sr. Vieira Júnior .....
me desculpe por tantas palavras ao seu Perfeito texto Jornalístico... mas senti-me "tentado" a compartilhar junto a este minha indignação!

Obrigado


Parabéns
Atenciosamente:

Agnaldo de Barros Trevizam

Postar um comentário